Páginas

quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

Formas de Voltar para Casa


"É melhor pensar que tudo isso foi uma história de amor."

Reconciliação é a palavra que atravessa todo o livro "Formas de voltar para casa" do chileno Alejandro Zambra. Seja no âmbito privado ou no social, a trama recompõe encontros com o passado por meio de relacionamentos amorosos, filiais e patrióticos. A história gira em torno de um narrador que tece reflexões sobre seu próprio processo de escrita e seu personagem - um professor que reencontra uma amiga de infância e, à partir desse encontro, revisita o passado. Alternando entre um e outro, Zambra consegue tecer situações alusivas à ditadura chilena e as derivações compostas tanto pelas pessoas que efetivamente se envolveram, quanto por aquelas que ficaram à margem dos conflitos daquele período.

"Enquanto os adultos matavam ou eram mortos, nós fazíamos desenhos num canto. Enquanto o país se fazia em pedaços, nós aprendíamos a falar, a andar, a dobrar guardanapos em forma de barcos."

O livro posiciona seu narrador entre o passado e o presente, realçando seu caráter reflexivo diante dos fatos vividos e dos aprendizados derivados dessa experiência. Os planos individuais e coletivos, mesmo alternados, possuem ecos que reforçam a influência de um sobre o outro e que se desdobram dentro de um desenho mais amplo. No entanto, essa relação de forças é, primordialmente apresentada no âmbito particular e é aqui que, a meu ver, está a genialidade da história, pois o autor consegue dizer do macro, focando as particularidades e as sutilezas de um cotidiano simples. Não é à toa que a primeira parte do livro seja intitulada de "Personagens Secundários".

Zambra é detentor de uma linguagem enxuta, sem firulas e isso marca com precisão cada trecho do livro, pois todas as partes parecem necessárias ao enriquecimento da trama. Além disso, as imagens e os recursos metafóricos utilizados também funcionam muito bem. É assim na cena do terremoto, um abalo que coloca no mesmo cenário tanto a família militante quanto o núcleo familiar que se posiciona à margem das questões políticas. É assim também quando o autor cria uma relação de equivalência entre a figura dos pais e a do país. As reconciliações familiares, tanto da mocinha que precisa voltar dos Estados Unidos para o Chile quanto do protagonista que passa a questionar a indiferença dos pais à ditadura, são mostras contundentes dessa boa utilização de metáforas para ajudar no andamento da história.

Com frescor, o livro realça um tema árido, como é o tema da ditadura, que mesmo servindo como pano de fundo nunca resvala na pieguice e nem diminuiu ou aplaina suas consequências. A história (de amor?) que nós é apresentada é repleta de imagens bonitas e evocativas e talvez a que mais tenha me emocionado seja a da camisa que traz em suas entrelinhas sentidos que ultrapassam aqueles dispostos pela história:

"Guardei as camisas de meu pai numa gaveta durante meses. Desde então aconteceram muitas coisas. (...) Olho agora essas camisas, estendo-as sobre a cama. Gosto de uma em especial, cor azul petróleo. Acabo de prová-la, definitivamente fica pequena em mim. Olho-me no espelho e penso que a roupa dos pais deveria sempre ficar grande em nós. Mas penso também que precisava disso; que às vezes precisamos nos vestir com a roupa dos pais e nos olhar demoradamente no espelho."

Vestir-se com a roupa dos pais [ou do país de origem], muitas vezes significa voltar e, nessa volta, reconciliar-se com uma história onde, na maioria das vezes, somos [ou fomos] simples coadjuvantes. Tão simples e, ao mesmo tempo, tão dolorido assim.

Foto de Leonard Freed - Running to school, 1965

terça-feira, 27 de janeiro de 2015

Playlist Literária


Entre as páginas de alguns dos últimos livros lidos, topei com canções citadas pelos personagens. A ideia, aqui, foi reuni-las em uma playlist. Sente só!

01. I've told every little star - Linda Scott [no livro A Chave de Casa]
02. Bang Bang - My Baby Shout me Down - Nancy Sinatra [no livro A Chave de Casa]
03. Where is my mind - Emmy the Great [no livro Formas de Voltar pra Casa]
04. Riding for the feeling - Bill Callahan [no livro Formas de Voltar pra Casa]
05. All my little words - The Magnetic Fields [no livro Formas de Voltar pra Casa]
06. Solitude - Billie Holiday [no livro O Inventor da Solidão]
07. Una furtiva lagrima - Enrico Caruso [no livro A Hora da Estrela]

Imagem capturada aqui.


domingo, 25 de janeiro de 2015

A Chave de Casa


"Como é cruel (e bonito) que a vida continue depois de você."

Uma neta recebe do avô a chave da casa que ele deixou na Turquia antes de emigrar para o Brasil. Uma mulher revive os dramas de uma relação amorosa com feridas que parecem impossíveis de cicatrizar. Uma filha faz memória da morte e da doença da mãe reverberando histórias de um passado imerso em exílios, dores e outras intensidades.

Intercalando essas três linhas narrativas, Tatiana Salem Levy borda, com delicadeza, sua própria identidade no livro "A Chave de Casa".  Ao empreender uma escrita de si, a autora consegue entrelaçar amor, memória, medo, sexo e outros temas fundantes da natureza humana.

"Nasci no exílio: e por isso sou assim: sem pátria, sem nome. Por isso sou sólida, áspera, bruta. Nasci longe de mim, fora da minha terra - mas, afinal, quem sou eu? Que terra é a minha?"

Cada história é contada como se estivéssemos diante de estilhaços de memória que, aos poucos, vão compondo um mosaico em torno da narradora. Impulsionada a percorrer seu passado, ela parte em busca da casa apontada pelo avô num país estranho, mas onde também estão fincadas suas raízes. Neta de judeus vindos da Turquia, nascida em Portugal e brasileira desde a primeira infância, a autora parece colocar espelhos diante de si mesma para encarar e interrogar suas dores e escarafunchar seus desejos.

Pouco à vontade diante do desenho intrincado que se cria entre o ser mulher, judia, brasileira, filha e amante, a protagonista vai revelando suas intimidades de modo muito verdadeiro - ou pelos menos com aquilo que há de verdade na literatura - e isso nos conecta a ela num ótimo jogo de identificações revelando uma espécie de universalidade naquilo que é tão particular.

O tom melancólico da escrita de Tatiana é colocado em cheque pela autora quando ela própria cria diálogos com a mãe morta em um contraponto deveras interessante sobre as tintas que uma escrita pode pintar sobre a realidade ou sobre o que sentimos/pensamos/fazemos:

"[Por que levar tudo para o lado da dor? Por que sempre assim, desde pequena? A história do seu avô não é feita só de perdas. Essa história que você conta também tem outras histórias. Por que não narra, por exemplo, a alegria de desembarcar em terra tão acolhedora como a nossa? Por que não conta que foi a partida que deu a ele tudo o que construiu? Que, ao desembarcar no Brasil, seu avô encontrou uma tranquilidade que não tinha antes? Por que insistir em palavras tão doídas?]"

O livro é um belíssimo mapeamento sobre intimidade, memória e sobre o que significa ser quem se é diante daquilo que, mesmo dolorido ou escamoteado, também nos constitui. E é bonito porque a história chega a dar pistas, mas nunca responde totalmente, as questões que orbitam em torno desse anseio que nos acompanha e nos faz caminhar à procura de uma casa cuja fechadura aceite nossa chave.

Foto: Wolney Fernandes

Epígrafe


quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

Maratona Literária - A Tentação do Impossível*


Aproveitando os dias de pernas pro ar, resolvi fazer uma maratona literária que consistiu em ler um livro por dia durante dez dias. A ideia principal foi tirar o atraso com leituras que eu gostaria de ter feito há tempos e não consegui. A escolha dos títulos para a maratona obedeceu ao seguinte critério: escolher livros recebidos de presente e que não ultrapassassem 120 páginas (que é a média de páginas que consigo ler, com tranquilidade, em um dia).

A maratona terminou hoje e no geral foi bem tranquila. Excetuando, é claro, a leitura do livro "A Obscena Senhora D" da Hilda Hilst que precisou de dois dias para ser lido. Como foi o primeiro livro que eu li da Hilda, não imaginei que fosse precisar de pausa para digerir todo o furacão de emoções advindos da escrita visceral da autora. No entanto, acabei por correr um pouquinho no dia seguinte e tudo se ajeitou. Gostei da experiência e pretendo repeti-la num futuro próximo. Abaixo segue o resumo das impressões sobre cada um dos livros lidos. Uma espécie de diário que eu fui compartilhando, durante a maratona, na minha timeline lá no Facebook.


Dia 01. Festa no Covil
Autor: Juan Pablo Villalobos
Um garoto, filho de um chefão do narcotráfico mexicano, narra seu cotidiano solitário entre as atividades comandadas pelo pai. O modo como o autor decidiu contar essa história de violência pelo olhar de um menino é o que faz toda a diferença. A narrativa é tocante e, por vezes, hilária, alternando entre a candura e a crueldade. Uma beleza de começo!

Dia 02. O Menino do Dedo Verde
Autor: Maurice Druon
Acabei de preencher uma lacuna na minha história como leitor ao concluir a leitura desse livro que é repleto de imagens evocativas sobre o modo de atuarmos no mundo. Escrita deliciosa, inventiva e que serve tanto para crianças quanto para adultos. Miraflores já é meu lugar preferido e o jardineiro Bigode eu também seguiria por todos os lugares possíveis. Achei bonito!

Dia 03. O Púcaro Búlgaro
Autor: Campos de Carvalho
Estranhamento é a palavra de ordem quando se começa a ler esse livro. Sua narrativa surreal nos coloca diante de personagens que nem de longe beiram à realidade, mas nem por isso, são enfadonhos. Pelo contrário, é exatamente as peculiaridades de uma história sem pé nem cabeça que faz do livro uma leitura singular. Na trama, o autor, querendo provar a existência de um púcaro búlgaro, decide recrutar voluntários para uma expedição para a Bulgária. Em grande parte do livro, acompanhamos um diário que nos conta os pormenores dessa preparação em um texto regado à muito humor negro e uma crítica afiada ao modo de vida do brasileiro em 1964, ano em que o livro foi escrito. Ri alto com a ousadia do autor que, entre outras pérolas, propõe um jogo sagaz com a língua portuguesa. Genial, genial!

Dia 04 - Casa 12
Autora: Letícia Constant
O livro é uma espécie de diário onde a autora, assumindo a voz de menina, relembra fatos da sua infância vivida em São Paulo no final dos anos 50. Cotidiano familiar, galeria de amigos, brincadeiras em casa e na escola, relação com vizinhos e toda sorte de acontecimentos dão o tom da narrativa, por vezes, repetitiva. Me incomodou um certo tom machista que o livro tende a realçar quando fala do papel da mulher e seus deveres para com a casa e o marido. Pode ser alguma referência aos costumes da referida década onde se passa a história. No mais, o livro me pareceu um bom modo de guardar lembranças de um tempo que deixa saudades. Destaque para as ilustrações feitas com recortes de revistas antigas feitas por Elisa Cardoso.

Dia 05 (e parte do dia 06) - A Obscena Senhora D
Autora: Hilda Hilst
Livro lido para o desafio "Os Componentes da Banda"
A Senhora D do título passa a viver no vão de uma escada enquanto trava rituais especulativos acerca de votos amorosos e outros devaneios na busca de sentidos para a perda do amante. Uma narrativa perturbadora e cortante. Nada é facil dentro dessas 90 páginas, tanto que não consegui ler em apenas um dia como era a proposta inicial. Primeiro livro da autora e já fiquei instigado para ler outras coisas dela. Força, Wolney, Força!

Dia 06 - Um Beijo de Colombina
Autora: Adriana Lisboa
A escrita delicada da Adriana Lisboa eu conheci no ano passado quando li o ótimo "Rakushisha". Foi uma alegria reencontrar a autora nesse livro mais antigo e perceber que a delicadeza e os silêncios são características que também aparecem aqui nesta história de amor entre a escritora Teresa e um professor de latim. Pela voz do professor, acompanhamos um homem tentando entender essa relação e lidando com as presenças, as ausências e as saudades que lhe atravessam. Utilizando um recurso metalinguístico (que faz toda a diferença no final) nos inserimos na vida do casal com todas as nuances de uma relação tranquila, mas intensa. Tendo a poesia de Manoel Bandeira como fio condutor da trama, a escrita é surpreendente porque consegue falar das minúcias mais banais e fazer de cada uma delas, um evento... uma tessitura de reflexões. Seja pela poesia do Bandeira empregada de forma genial na narrativa, seja pela dor da perda ou pela beleza do encontro, as identificações foram tantas que, até agora, esse livro foi, sem sombras de dúvidas, a melhor leitura desse desafio. Recomendo!

Dia 07 - Podem me chamar de Simbá
Autor: Francisco Castro
Paulo é um menino com dez anos que conta a história de sua relação com o avô que tem Alzheimer. O livro é cheio de altos e baixos (mais baixos do que altos é verdade) e a relação dos dois acaba caindo nos clichês do gênero ao apresentar personagens unidimensionais. Como pano de fundo, há a história de "Simbá, o Marujo" que não funciona no decorrer da narrativa. Me incomodou também a escrita em primeira pessoa. Ao assumir a voz do menino de dez anos o autor se perde e não consegue convencer que se trata de uma criança contando a história. Enfim... até agora, o pior livro do desafio.

Dia 08 - O Potencial erótico de minha mulher
Autor: David Foenkinos
Apesar do título esquisito e da capa estranha, cheguei até esse livro porque li o ótimo "A Delicadeza" do mesmo autor. E foi uma leitura curiosa essa de agora porque a escrita é bem distinta. Apesar de diferente, não é uma escrita ruim, mas nessa obra, encontrei um Foenkinos muito bem humorado e com um pé no surrealismo (a apalpadora de testículos me fez dar altas risadas). Foi bem divertido ver como o autor consegue um tom diferenciado e bem mais apropriado ao tema. O que não funcionou muito desta vez foi o desenvolvimento da história. Gostei bastante do início do livro, mas depois achei que a história descambou para um lado que foi se distanciando cada vez mais do meu interesse. Na trama, depois de uma tentativa de suicídio frustrada (e isto não é spoiler porque está na primeira página do livro), Hector decide mudar sua vida. Colecionador compulsivo, ele começa a frequentar um grupo que o ajuda a superar o vício de ajuntar coisas até que encontra Brigitte, cuja sensualidade mexe com suas convicções mais remotas de colecionador.

Dia 09 - As Vozes do Sótão
Autor: Paulo Rodrigues
Damiano é um alfaiate que ouve vozes e, à partir delas, faz um mergulho em suas memórias atravessadas pelas dores experimentadas na infância. O livro é dividido em duas parte (uma se passa no Brasil e outra no Uruguai) reverberando deslocamentos, fugas e travessias interiores. A escrita de Paulo Rodrigues me surpreendeu bastante porque é sofisticada e dolorida. As diferentes vozes adotadas para um mesmo personagem, embora não lineares, funcionam como um fluxo confluente que estabelece cruzamentos interessantes no momento certo! Gostei mais da primeira parte do que da segunda, mas nada que comprometa a boa experiência de leitura. Uma grata surpresa nesta etapa final do desafio.

Dia 10 - Miserere
Autora: Adélia Prado
Miserere é o livro mais recente da Adélia Prado onde a poeta destaca fragmentos de uma relação entre aquilo que é divino e aquilo que é humano. O livro é respingado pela fragilidade da vida, por um sentimento de descompasso entre o corpo e o espírito e pela visão focada no cotidiano que é uma das característica da autora que eu mais gosto. Mais não sei dizer, só sentir.

(*) O título da maratona eu peguei do livro do Mário Vargas Llosa.
Foto: Wolney Fernandes

O Retorno


Ainda não me esqueci da senha. Abro a porta devagar, quase com medo, aquele medo bobo que a imaginação se recusa a preencher. Tiro uma teia de aranha dos cantos, desejando que a aranha já tenha encontrado outro canto. Passo os dedos de leve pelo coração e dou passos cuidadosos para continuar ouvindo suas batidas. Não vá pisar em algum sentimento que tenha esboçado ou em alguma epígrafe rascunhada anteriormente. Pelo caminho tropeço num Wolney que está fora do lugar, como um sapato esquecido. Devia ter acendido a luz, mas tenho esta mania de andar às escuras pra dentro de mim mesmo. Olho pela janela enquanto tento adivinhar quem terá regado meus desejos durante a minha ausência.

Imagem: Wolney Fernandes

Atlas das Nuvens


"Atlas das Nuvens" exerce um fascínio ímpar na minha vida de leitor. Primeiro porque é do inglês David Mitchell que é um dos meus autores preferidos. "O Menino de Lugar Nenhum", do mesmo autor, ainda reverbera intensidades aqui dentro do peito. Depois, pela estrutura formal que o livro apresenta. Sabe aquelas bonecas russas que estão abrigadas uma dentro da outra? Pois é! "Atlas das Nuvens" é a reunião de seis histórias que se abrem à partir de premissas inventivas e mídias diferentes [um diário, um livro, um filme...] que em diferentes épocas se referenciam mutuamente.

O livro começa com um diário escrito em 1850 por um viajante que está atravessando o Oceano Pacífico quando, de repente, você descobre que esse diário está sendo lido por um jovem compositor que vive no período entre guerras, já no século XX. As cartas desse jovem compositor fazem parte da trama de um livro policial que se passa na década de 70. Esse livro chega às mãos de um editor que vive em nossa época e cuja história mirabolante se transforma em um filme. Esse mesmo filme, no futuro, será uma parte importante do testamento de uma jovem oriental geneticamente modificada. E, por fim, os feitos dessa jovem servirão como base para a sexta história ambientada num futuro pós-apocalíptico. UFA!

Tudo funciona como o primeiro movimento de um sinfonia, pois cada uma dessas histórias enuncia, amplia e passa adiante a ideia de conexão entre as coisas e de que nossas ações nunca se cumprem nelas próprias, mas reverberam em multiplicidades que ecoam indefinidamente ao longo do tempo. E ao enunciar o mesmo tema várias vezes, pois as histórias são abertas sequencialmente e depois fechadas em ordem inversa, o autor consegue impregnar cada sequência com os tons e os acontecimentos de cada uma das versões anteriores.

Dito assim, parece complicado, mas eu garanto que não é. "Atlas das Nuvens" além de um livro divertido, inteligente e repleto de aventuras, também nos convoca a pensar o tempo de forma espiralada e nos impulsiona a entender que passado e futuro se atualizam pela experiência que se faz no presente. Além disso, à medida que avançamos e retornamos, traços peculiares da nossa natureza humana são realçados para nos lembrar que em nossas fragilidades é onde reside toda a força propulsora da vida.

"E só com o teu último suspiro é que hás de perceber que a tua vida não é mais que uma gota num oceano sem limites! E, contudo, o que é o oceano senão uma profusão de gotas?"

A leitura é fluida e me impressionou bastante o modo como Mitchell consegue dar a cada uma das histórias um tom diferenciado na escrita. Um exercício elegante sobre recursos distintos de narração. Na sequência que compõe o miolo do livro, por exemplo, o autor adota um modo bem coloquial para realçar aspectos da oralidade que é tão importante para a história.

"Olhei as nuvens oscilando, deitado no chão daquel' caiaque. As almas cruzam os tempos com' as nuvens cruzam os céus e, embora nem a forma d' uma nuvem, nem a cor, nem o tamanho fiquem na mesma, continua a ser uma nuvem, e é o memo coas almas. Quem pode saber donde veio soprad' a nuvem ò' de quem será a alma amanhã?"

Infelizmente, o livro nunca foi lançado no Brasil, mesmo depois da adaptação cinematográfica (a meu ver, desastrosa) dos Wachowskis e de Tom Tykwer que aqui ficou com o título reducionista de "A Viagem". A minha edição é portuguesa, mas ouvi rumores de que há uma tradução sendo preparada pela Cia. das Letras. Oremos!

Imagem: Wolney Fernandes

terça-feira, 20 de janeiro de 2015

Exorcismo


Meus olhos estacionaram na simultaneidade do dia e da noite contida na obra L’Empire dês Lumières de René Magritte. Será dia? Será noite? Quem estará em casa? 

A luz natural e a luz artificial estão presentes como se a noite e o dia tivessem deixado de se esconder um do outro, simultaneamente revelados nesta imagem que parece ter vida dupla. Apesar de tanta luz, há algo de incômodo na temperatura da paisagem. Um arrepio, sei lá... Talvez a descoberta de que, mesmo abrindo a porta à luz, não conseguimos expulsar os nossos demônios.

terça-feira, 13 de janeiro de 2015

Pé de Beijo


"Tudo que não fala, faz.
Planta beijo de três cores ao redor da casa
e saudade roxa e branca,
da comum e da dobrada."


Versos de Adélia Prado
Foto minha

sábado, 10 de janeiro de 2015

Projetos de leituras para 2015 e vida afora


Em 2015 eu desejo organizar melhor minhas leituras. Eu sei que esse desejo pode soar como uma utopia meio besta já que minha vontade para ler um livro depende de uma série de fatores muitas vezes nascidos à revelia de projetos firmados no início do ano. No entanto, percebo que os projetos de leitura me ajudam a ultrapassar alguns limites impostos por uma certa comodidade que me assola na hora de escolher um livro para ler. 

Quando escolhemos o que vamos ler, por vezes, não nos damos conta de algumas ciladas que passam despercebidas. No meu caso, desejo prestar mais atenção na questão do gênero, da etnia, da religião e do estilo, entendendo que estes pontos podem escamotear fronteiras e situações hegemônicas. A motivação por trás dessa organização está no desejo de conhecer autores/as novos, de entender que literatura se faz no mundo todo e não somente no continente europeu, de ler livros clássicos e contemporâneos, de não me deixar levar pela onda midiática em torno do livro da moda, de me aventurar por estilos pouco explorados... Enfim, de sair da minha zona de conforto e conhecer outras formas de ver.

Quero também movimentar minha estante, pois minha biblioteca é imensa e tenho notado que alguns livros tem ficado esquecidos nos cantos escuros das pilhas que se avolumam e que, por um motivo ou outro, vou deixando pra depois e esse depois nunca chega. A ideia então é começar pelos livros que já tenho aqui e não sair como um desvairado à procura de livros novos. 

Alguns desses projetos eu já comecei e outros ainda estão em construção. Alguns eu pretendo fazer em 2015 e outros eu desejo levar para a vida afora. Sem obrigatoriedades ou qualquer outra entrave que me distancie do prazer de ler. De todo modo, já fica o convite para quem desejar participar e/ou customizar algum dos desafios listados a seguir. Vem comigo?

01. Os Componentes da Banda [para ler mais literatura nacional] - Toda a explicação desse desafio literário e os livros que fazem parte dele você pode acessar aqui.

02. Os Dias Lindos [para ler mais contos, crônicas e poesia] - No balanço anual de leituras percebi que leio poucos contos e poesia. Em 2015, quero mudar isso e a ideia é fazer um projeto de leitura diária com esses estilos. Ler um conto, uma crônica ou poesia por dia numa espécie de ofício literário. Os livros vão se alternar conforme a vontade de cada dia. O título do projeto eu peguei do livro do Drummond.

03. Atlas das Nuvens [para ler mais obras provenientes de outras regiões cuja literatura eu desconheço] - Em 2015, meu olhar estará atento para a escolha de livros que tenham sido escritos em outros países diferentes daqueles ditados por meu olhar eurocêntrico. A proposta e a vontade é ler pelo menos um livro por mês que tenha sido escrito em algum lugar diferente daqueles que eu já esteja acostumado. Este projeto depende ainda da minha disposição em separar na estante, alguns títulos que caibam nesse desafio. Tão logo eu consiga fazer isso, faço um update nesta postagem. Como de costume, o título do projeto tem como fonte o livro do David Mitchell que é o xodó da vez.

04. Não me abandone jamais [para ler mais clássicos] - Esse projeto eu já comecei em junho do ano passado quando me propus, junto com amigos do clube de leitura a destrinchar Ulysses do James Joyce. A leitura continua, vagarosa e sempre e com algumas percepções anotadas aqui. Um aspecto que pretendo valorizar nesse desafio é exatamente essa questão do tempo. Não apressar a leitura e me debruçar sobre as intensidades que elas vão deixando em mim para saboreá-las e entremeá-las com a vida. Quero buscar também referências acerca da obra e, sempre que possível, cruzar informações variadas para mergulhar um pouco mais nos sentidos diversos que elas suscitam. Apesar de ter muitos clássicos (leia-se calhamaços) na estante, eu tendo a protelar a leitura dos mesmos em função da literatura contemporânea que vai atropelando essas obras escritas no passado. Vamos ver se consigo equilibrar isso. Dentro desse projeto, pretendo também atravessar os sete volumes de "Em Busca do Tempo Perdido" do Proust começando agora em janeiro. O título desse projeto é o mesmo do ótimo livro do Kazuo Ishiguro.

05. Esconderijos do tempo [para reler os livros guardados na minha memória afetiva] - A ideia aqui é revisitar os livros que contribuíram para minha formação como leitor desde a descoberta das letras até aquelas leituras que atravessaram a adolescência e juventude. Uma primeira compilação já foi feita aqui e o título do projeto eu peguei do Mário Quintana.

Uma nota: Os desafios um, dois e três serão conduzidos, numa primeira rodada, por um critério de escolha que privilegiará os livros escritos por mulheres.  

Um desejo: Que mais gente se anime a prestar atenção nas escolhas que faz quando o desejo de ler atravessar todos os afazeres do dia-a-dia. Boas leituras a todos/as e um 2015 repleto de muitas descobertas!

Foto: Wolney Fernandes